Fogo nos fascistas
Na terça-feira, 26/05, eu, assim como muitas outras pessoas, me deparei com um vídeo terrível. Mais um dos tantos casos de assassinato de uma pessoa preta pela polícia racista, no caso dos EUA. “Apenas” mais um caso, mas, dessa vez, à luz do dia, com pessoas à volta, tudo filmado e a vítima, George Floyd, de 46 anos, algemado, no chão, literalmente sufocando com o joelho do policial racista pressionando seu pescoço. George implorava, pedia para ele sair, dizia que não estava conseguindo respirar. As pessoas, ao redor, questionavam os policiais (porque o assassino estava sendo assistido por seus amigos igualmente brancos e igualmente racistas), diziam que aquilo estava errado e que aquele homem iria morrer. E foi o que aconteceu.
Ele morreu. Um homem, preto, morreu sufocado em plena luz do dia, na rua, com seu pescoço sob o joelho de um homem branco fardado que se sentia com direito sob sua vida. “He is human, bro” (“ele é humano, cara”), foi o que um dos homens disse, assistindo àquela cena. Eu tentei reassistir o vídeo, pegar mais falas dos presentes, mas não tive estômago para isso. É triste, deprimente e, acima de tudo, revoltante. Mas, infelizmente, não é novidade.
Ele era humano, mas sua humanidade não o salvou da morte. Da barbárie. De ser sufocado “em praça pública”. Até quando esse tipo de prática vai ser aceita? A realidade é que muita coisa parou durante a quarentena, mas o racismo perdura. O genocídio do povo preto não só lá, mas também aqui, continua. No Rio de Janeiro, a PM dobrou o número de operações em favelas durante a quarentena[1]. Enquanto todos e todas – que não são irresponsáveis ou canalhas como o presidente – lutam por se proteger do coronavírus, tentando ficar em casa, quando podem, existem tantos outros que não têm onde morar, e outros tantos que, mesmo tendo moradia, não possuem sequer água para fazer o mínimo de proteção: lavar as mãos[2][3][4] [e tantas outras referências semelhantes]. Outras tantas, são despejadas justo nesse momento[5]. E muitas dessas pessoas, além de tudo, ainda têm que lidar com esses assassinos, sejam os fardados, ou os sem farda[6].
Mais uma vez, nada disso é novidade. Os assassinatos de Paraisópolis foram em janeiro[7] desse ano e isso, infelizmente, é só um exemplo das chacinas cotidianas do braço armado do Estado. Isso sem falar das agressões simbólicas, como as sofridas por Nedye Fatou Ndiaye por parte de um bando de moleques de 14 anos do Colégio Franco-Brasileiro, um colégio de rico no Rio de Janeiro[8]. Também tive a oportunidade de ler os absurdos que foram falados nas mensagens trocadas, por, repito, moleques (brancos) de 14 anos! O resultado é o afastamento temporário deles. Só isso. Os meninos brancos racistas de 14 anos sequer foram expulsos da escola. Já João Pedro, menino preto, favelado, de 14 anos, que sequer cometeu qualquer crime, foi assassinado em uma dessas tantas operações policiais nas favelas[9].
E, novamente, nenhuma novidade. Não quero ser repetitivo, mas quero saber o que mais falta acontecer? O que falta para a revolta? O que fazer com a revolta? Talvez o assassinato de George Floyd tenha sido o que faltava nos EUA. Nos últimos dias, em plena quarentena, tem acontecido uma série de protestos devido ao assassinato. Assim como aqui já houve tantos protestos semelhantes (mas talvez não tão intensos). A questão é: até onde vão esses protestos?
Expandindo um tanto mais as razões de revolta, aqui, na realidade brasileira, cada dia mais se percebe o aumento das políticas autoritárias do governo federal. Essas atitudes não vêm de hoje, como não foi agora que o exército entrou na favela ou que foi pautada uma lei antiterrorismo. Ainda assim, é inegável o amor pelo autoritarismo do fascismo escancarado de nosso presidente. E o nome é esse mesmo: fascismo. Assim como a PF caminha cada vez mais para uma gestapo particular desse crápula[10]. Até quando a luta contra esse governo vai se restringir às notas de repúdio? À espera de um “milagre catastrófico” (como diria Émile Pouget)? Qual a medida de fascismo necessária para entendermos que temos que lutar contra o fascismo?
E, extrapolando ainda mais, até quando vamos esperar que políticos, governos, ricos façam alguma coisa por nós? Até quando vamos fazer parte dessa “festa” da democracia – festa para quem? -, enquanto a política, a justiça e o capital voltam as costas para todos e todas? Ou, melhor, viram de frente quando convém: quando é para humilhar, ludibriar, arrancar moedas, votos, ou para assassinar. E até quando vamos defender os assassinos do povo, os “fascistas antifascistas” que dizem que vão “mirar na cabecinha”, os fascistas com gestapo? Até quando vamos esperar que ex-presidentes saiam da cadeia, que partidos resolvam dar a prometida “guinada à esquerda”, que a justiça seja, enfim, justa? Até quando vamos nos contentar com os lucros altíssimos dos bancos em nome da governabilidade? Com dívidas milionárias sendo perdoadas enquanto quem não é rico vende corpo e alma para pagar dívidas infinitamente maiores? Quais outros direitos vamos esperar que sejam tirados? Quais outras reformas vamos esperar passarem? Quantas pessoas mais vamos esperar morrer pelo vírus em nome da sobrevivência de empresas que nada se importam com seus funcionários? Até quando vamos assistir homens fardados assassinando outros homens e mulheres?
Não faço como outros, não vou dizer “ainda bem” que George foi assassinado para que as pessoas se revoltassem. Mas digo que espero que possamos ter aprendizados concretos com tudo que vimos passando. Que tudo isso que estamos passando possa mostrar que não somente os governadores contrários à política fascista do presidente são “bosta” – para não dizer coisa pior, como ele disse na fatídica reunião. Para essa gente, os grandes da política, os donos do capital, os banqueiros, os assassinos fardados (ou não), todos e todas nós não passamos disso: bosta. E se algum aprendizado pode sair disso tudo, é que devemos ser solidários entre nós e revoltados contra eles. E se por acaso o sistema quiser tirar a minha vida, talvez até possa conseguir, porém, minha alma nunca. Fogo nos fascistas!
Jorge Vitral é físico, mestre em educação e é um dos fundadores editores do Portal Autônomo de Ciências.
↑[1] https://extra.globo.com/casos-de-policia/coronavirus-pm-dobra-numero-de-operacoes-em-favelas-do-rio-durante-quarentena-24365511.html
↑[2] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/com-100-milh%C3%B5es-de-brasileiros-sem-esgoto-saneamento-%C3%A9-desafio-em-pandemia-1.417919
↑[3] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/04/04/sabesp-mantem-medida-que-deixa-casas-sem-agua-a-noite.htm
↑[4] https://eurio.com.br/noticia/12715/pandemia-encontra-favelas-e-bairros-sem-agua.html
↑[5] https://midiaindependente.org/?q=node/718
↑[6] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/moradores-de-rua-sao-assassinados-a-tiros-na-zona-sul-do-rio.shtml
↑[7] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/01/acao-da-pm-que-deixou-9-mortos-e-12-feridos-em-paraisopolis-completa-um-mes-31-policiais-sao-investigados.ghtml
↑[8] https://oglobo.globo.com/rio/colegio-franco-brasileiro-vai-afastar-alunos-envolvidos-em-caso-de-racismo-24448300
↑[9] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/laudo-indica-que-tiro-de-fuzil-atingiu-joao-pedro-pelas-costas.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha
↑[10] https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2020/05/26/pf-do-rio-vira-gestapo-de-bolsonaro-golpe-vem-a-galope.htm
O texto original pode ser lido aqui.