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La mano del pueblo x a mão (in)visível do mercado

Maio 28, 2019 - 20:06
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Em 1978, a Argentina, uma importantíssima escola de futebol, levantava pela primeira vez a taça da Copa do Mundo, vencendo a Holanda por 3 a 1 no estádio Monumental de Núñez, do River Plate, em Buenos Aires. Bem perto dali, na Escola de Mecânica da Armada (ESMA), uma unidade da Marinha argentina, os gritos de dor dos torturados pela ditadura presidida pelo general-gerente Jorge Rafael Videla eram encobertos pela festa da vitória no campo. O Videla dos pesadelos dos perseguidos é o mesmo que entrega a taça a Daniel Passarella, capitão da seleção albiceleste. A Copa foi utilizada pela ditadura pra buscar mais apoio interno e simpatia internacional. Enquanto a mãe de um desaparecido, na Praça de Maio, implorava a jornalistas estrangeiros "ajudem-nos, por favor; vocês são a nossa última esperança", Videla declarava solenemente que a Copa era da paz, junto com a sarcástica propaganda "somos direitos e humanos". A Copa, a paixão nacional pelo futebol, a expressão-síntese do povão argentino, como embalagem da ditadura, pra que só a embalagem fosse vista e pra que ela sufocasse os que ela tornava invisíveis. A Copa como miragem, como a imagem conveniente a esconder a inconveniente realidade. A vitória na Copa como metáfora (evidente, mas ainda assim eficaz) de um país vencedor, que se organizou pra isso e cujo povo é feliz por isso.

A ditadura empresarial-militar argentina tinha começado pouco mais de dois anos antes, com o golpe de Estado de 24 de março de 1976. Isabelita Perón, que presidia o país desde a morte do seu marido, Juan Domingo Perón, em 1974, foi deposta pelas forças armadas (como explica especialmente bem o historiador argentino Felipe Pigna aqui). Não pelo que ela fazia, pois era, ironicamente, uma espécie de anti-Evita (esposa anterior do Perón, que se destacou como porta-voz radiofônica dos descamisados, como alma de uma política social peronista - e, também ironicamente, a dupla Evita-Isabelita é um símbolo das contradições do peronismo), mas porque seu sobrenome precisava ser desaparecido, porque ela não conseguia utilizar esse sobrenome como varinha mágica capaz de controlar os trabalhadores em luta e porque os setores pros quais ela atuava queriam aprofundar ainda mais o projeto repressivo a serviço do grande capital, especialmente transnacional. Foi no governo da Isabelita que o ministro do bem-estar social (mais uma ironia), José López Rega, criou a Aliança Anticomunista Argentina, também conhecida como Triple A, um grupo de extermínio que abriu larguíssimas 9 de Julho (principal avenida de Buenos Aires) pra ditadura mais direta. Isabelita também colocou em marcha a Operação Independência, na qual as forças armadas foram encarregadas de exterminar a luta armada e, de modo mais geral, os lutadores sociais e políticos. No seu governo, começaram a funcionar de modo mais organizado centros clandestinos de detenção e de tortura, como na siderúrgica Acindar, então presidida por José Alfredo Martínez de Hoz, que em seguida foi ministro da economia da ditadura.

A "Triple A" Shell-Renault-Volkswagen...

Com o golpe de 24 de março de 1976, a Argentina, que já havia passado por outras ditaduras, entrou mais diretamente na transnacional do terror de Estado que foi a Operação Condor, uma articulação entre as ditaduras latino-americanas (o ciclo mais direto começou com o Paraguai, em 1954, e passou pelo Brasil, em 1964, após uma tentativa em 1954 mesmo, pelo Uruguai e pelo Chile, em 1973, e pela Argentina, em 1976), cujo principal patrão era o Tio Sam. Essa jogada fez parte de uma estratégia geopolítica bem mais geral, que começou a ser executada ainda durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945, pra utilizar a delimitação cronológica mais oficial) e que ganhou força na Guerra Fria. Uma estratégia que tinha como objetivo aprofundar muito as posições estadunidenses (do seu Estado e das suas transnacionais, que, no fundo, são duas partes de um gigantesco conglomerado) e de outros países-transnacionais, como a Inglaterra/Shell, a França/Renault (que, embora menos lembrada, também ensinou muitas formas de tortura, notadamente a partir da sua experiência na Guerra da Argélia) e a Alemanha/Volkswagen no xadrez mundial. Isso passava por derrotar, por todos os meios, todas as tentativas de caminhos minimamente descolonizados e populares.

A ditadura empresarial-militar argentina de 1976 a 1983 diferiu das anteriores no país por ter sido a mais feroz delas, aquela em que as forças armadas se engajaram de modo mais completo (apesar das brigas internas, que, em alguns casos, acabaram em assassinatos), organizando a repressão nos detalhes, tendo aprendido com as ditaduras que a antecederam no próprio país, como a do Juan Carlos Onganía (1966-1970; em parte, o golpe de 1976 foi feito porque o Onganía não conseguiu domar a luta popular), e com as dos países vizinhos (por exemplo, o Pinochet orientou o Videla a não juntar prisioneiros num espaço público de grande visibilidade, como ele fez no Estádio Nacional, em Santiago, e os desaparecimentos foram em parte fruto desse know-how repressivo), e por ter sido uma das mais desnacionalizantes e desindustrializantes do período. Os exílios, as prisões, os seqüestros, as torturas, os assassinatos, os desaparecimentos (pelo menos 6 mil pessoas foram dopadas e jogadas de aviões no mar e em rios, nos vôos da morte, por exemplo), os roubos de bebês de prisioneiras torturadas e sua entrega a outras famílias, muitas vezes tendo pelo menos um membro ligado à ditadura... A guerra suja foi uma guerra total contra todas as conquistas sociais garantidas pelas lutas populares e contra todo o arcabouço prum patamar mínimo de independência econômica. Serviu como terraplanagem sangrenta, preparando o terreno pruma das mais brutais e velozes concentrações de riqueza no mundo. 30 mil desaparecidos, milhares de outros tendo também sofrido muito diretamente, pra que um punhado fosse passar férias na Disneylândia e aplaudisse o desmonte nacional beneficiando verdadeiramente um punhado ainda muito menor.

A ditadura, que a junta militar (sua primeira formação eram o general Jorge Rafael Videla, o almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro Orlando Ramón Agosti) chamou de Processo de Reorganização Nacional, expressão bem tecnocrática, tinha o peronismo como um dos seus principais alvos. Porque o Perón, apesar das suas contradições, das suas ambigüidades, era, mesmo morto, uma espécie de síntese, na memória popular, da possibilidade do povão conquistar direitos, da idéia de que o povão tem direito a ter direitos. O Perón era o Gardel da política argentina. Ele soube falar como poucos numa linguagem que tocou fundo nos corações de grande parte do povão. Foi muito habilidoso no entendimento prático da psicologia de massas e na sua utilização política, no seu contexto histórico concreto. E era justamente nisso que residia o grande perigo do peronismo pro liberalismo econômico, pros que querem a mercantilização de tudo: o Perón estava muito longe de ser socialista (e parte do peronismo era inclusive especialmente anti-socialista), mas movia as massas trabalhadoras, movia o povão. O grande capital não queria mais uma política de conciliação de classes, como o peronismo (ou o getulismo, no Brasil), mesmo essa lhe sendo benéfica. Queria a obediência e a subserviência completa da classe trabalhadora.

Privatização do pétróleo

Assim como o Juan Domingo Perón foi uma espécie de continuação aprofundada do Hipólito Yrigoyen (que governou a Argentina de 1916 a 1922 e depois de 1928 a 1930), a ditadura empresarial-militar iniciada em 1976 foi uma nova Década Infame, levando ao extremo a lógica da já extremista ditadura do José Félix Uriburu (1930-1932). Em 1922, Yrigoyen havia criado a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), que pode ser vista como a Petrobrás de lá (depois virou a Petrobras e até mesmo a PetroBrax de lá), só que 31 anos antes da criação da Petrobrás (na época, com acento). Ainda que sem um movimento que possa ser considerado, em algum grau, uma espécie de equivalente local da campanha O petróleo é nosso, que criou a Petrobrás, a YPF foi criada com uma visão semelhante à da campanha brasileira: ser uma ferramenta especial pra não ficar refém dos grandes trustes transnacionais e pra obter uma independência energética, base muito importante pruma independência econômica e política. YPF x Standard Oil/Royal Dutch Shell... O general Enrico Mosconi, que foi um dos principais idealizadores da YPF e a presidiu nos seus primeiros anos, pode ser comparado, em algum nível, com o general Júlio Caetano Horta Barbosa, um dos principais defensores da tese do monopólio estatal do petróleo e da criação da Petrobrás. Pois bem, a partir do golpe do Uriburu, se instalou a Década Infame (1930-1943), um período em que os interesses das grandes potências capitalistas e de suas transnacionais, inclusive no ramo do petróleo e da energia em geral, tiveram nos governos argentinos prepostos muito empenhados. Nesse contexto, não apenas os Estados Unidos, mas várias outras potências, com destaque pra Inglaterra, ampliaram seu poder sobre os rumos cotidianos do povo argentino. A arrogância imperialista pisando todos os dias na alma do povão argentino. O país formatado pruma cúpula local a serviço das cúpulas dos países centrais da economia capitalista mundial. E pra essa cúpula local se sentir européia (na época, ainda sobretudo européia, apesar da força da Doutrina Monroe) e usamericana. A Argentina era, pra essa cúpula, como um clube, bem no estilo dos clubes burgueses-aristocráticos ingleses do tipo Occidental Private Club, só que com sócios ao mesmo tempo muito colonizados e muito orgulhosos do seu sotaque local. Uma cúpula que só era argentina pra inglês ver. River Plate e Boca Juniors, os dois clubes de futebol mais famosos do país, estão impregnados de inglês, o que ajuda a mostrar o nível do domínio inglês na Argentina. E a Década Infame, que tomou conta da Argentina após o golpe contra o Yrigoyen e buscou apagar o yrigoyenismo, uma espécie de pré-peronismo, do mapa político nacional, prejudicou muito a vida cotidiana de grande parte da classe trabalhadora argentina. O liberalismo econômico, que é outro nome pra liberdade pros grandes capitais oligopolistas agirem sem levar em consideração a vontade e a necessidade popular, imperou durante a Década Infame, seja sob a forma de ditadura direta, seja sob a forma de democracia de fachada. A ditadura de 1976 tentou apagar o peronismo (ao mesmo tempo em que utilizou a ala direita do peronismo) e também foi um soldado a favor dos grandes agentes privados e privatizantes, especialmente transnacionais. Especificamente no que diz respeito à YPF, tanto a Década Infame como a também infame década da ditadura empresarial-militar, apesar de tentarem, não foram suficientes pra decretar de uma vez só a privatização e a desnacionalização, mas, em ambos os períodos, o caráter estatal e potencialmente público da YPF foi duramente atacado, com muitas vantagens pras empresas privadas do setor de petróleo/energia, com ênfase em transnacionais estrangeiras.

O livro O petróleo e as Malvinas, publicado em 1981 por Adolfo Silenzi de Stagni, estudioso argentino da questão da energia, mostra bem a luta geopolítica em torno do petróleo no seu país. Como pode ser lido na reportagem que a jornalista Beatriz Bissio fez sobre o livro (e o tema) na edição 45 da revista Cadernos do Terceiro Mundo, em maio de 1982, ele ressalta que, na região das Ilhas Malvinas, que a Inglaterra domina mas que historicamente são reivindicadas pela Argentina como parte do seu território, há importantes jazidas de petróleo e que esse é um dos motivos pelos quais a Inglaterra se empenha em dominar a região. Pelo menos desde os anos 1960, foram feitas pesquisas sobre o petróleo nas Malvinas. O general Jorge Leal encabeçou em 1965 a primeira expedição argentina ao Pólo Sul e disse que as Malvinas são parte de uma plataforma submarina onde se sabe que existe petróleo. No final dos anos 1960, a Inglaterra já fazia pesquisas sobre petróleo nas Malvinas e passou a fazê-las de modo bastante secreto, ao concluir que ali havia mais petróleo do que no Mar do Norte, segundo o Silenzi. Em 1971, a empresa estadunidense Geocom Inc. apresentou um relatório dando conta de que havia petróleo nas Malvinas. Também nos anos 1970, os ingleses fizeram diversas pesquisas geológicas na região, que foram reunidas no que ficou conhecido como Relatório Griffiths, feito pelos geólogos da Universidade de Birmingham Donald H. Griffiths e P. F. Parker, a pedido do Foreign Office (que é o Ministério das Relações Exteriores britânico). Esse documento complementou o relatório que o britânico lord Shacleton havia apresentado às autoridades inglesas em julho de 1966, também confirmando a existência de petróleo no arquipélago das Malvinas.

No seu livro, o Silenzi sustenta que um dos motivos, geralmente pouco comentado, pelos quais a Inglaterra entrou em guerra contra a Argentina nas Malvinas foi a questão do petróleo. Ele lista uma série de comunicados na imprensa mostrando que uma guerra entre a Argentina e a Inglaterra em torno das Malvinas por causa do petróleo já vinha sendo vista como uma possibilidade anos antes dela ser deflagrada. A Junta Militar argentina não apresentou a questão do petróleo como um dos motivos pra tentativa de retomar as Malvinas e nem mesmo que havia essa questão estratégica na região, mas, segundo Silenzi, isso se deve provavelmente a que ditadura, que estava privatizando a YPF, também estava disposta a ceder o petróleo à Inglaterra em troca de uma soberania formal, mas inócua, sobre as Malvinas. Silenzi cita ainda que, em 1974, Carlos García Mata, um engenheiro argentino e, principalmente, um homem de negócios radicado em Nova Iorque, apresentou à Argentina a proposta O petróleo argentino e as Ilhas Malvinas, no qual defende que, em troca da soberania formal sobre esse território, a Argentina arrendasse por 30 anos a exploração de petróleo na região à Comunidade Econômica Européia (CEE), antecessora da União Européia. García Mata avaliava que as Malvinas tinham mais petróleo do que o Golfo do México e dizia que a concessão traria dinheiro pra Argentina e que isso poderia ajudar o país e a YPF. Não muito diferente do que dizem hoje pra justificar a venda de ativos da Petrobras. Em 1979, no governo do Videla, a Argentina concedeu à Shell duas áreas na bacia marinha austral, denominadas Río Gallegos e Magallanes. A Shell, apesar das pressões, não havia conseguido isso em 1971. O livro de Silenzi conta também que o Fundo Monetário Internacional (FMI) pressionou contra a tentativa de se aprovar uma nova lei de hidrocarbonetos em 1972, que teria dado à YPF e à Gás del Estado o monopólio estatal.

Em 1982, quando o general Leopoldo Fortunato Galtieri enviou tropas argentinas pras Ilhas Malvinas, a ditadura vivia uma crise. Ele acreditava que a ação militar de retomada das Malvinas traria, na prática, um grande apoio popular à ditadura, já que o sentimento nacional em torno das Malvinas é forte. O Galtieri, que, antes de ser general-gerente do país, havia sido assessor da presidência da YPF, achava que os Estados Unidos apoiariam a Junta Militar argentina na retomada das Malvinas porque a ditadura servia aos interesses dos grandes capitais estadunidenses. Achava que a própria Inglaterra, pra cujos grandes capitais também era estendido um tapete vermelho (do sangue dos perseguidos), aceitaria, ainda que a contra-gosto, a retomada das ilhas, contanto que suas transnacionais ganhassem de presente muito do petróleo do arquipélago. Afinal, pensava o Galtieri, ele (e a ditadura da qual fazia parte) era sócia do Occidental Private Club. Colonizado, não percebeu que a América Latina sempre é vista como um zoológico pelos que dominam o sistema capitalista mundial. A Inglaterra enviou suas tropas pras Malvinas. A Margareth Thatcher, a Rainha Vitória do século XX, que nunca havia criticado a repressão na Argentina, passou a tratar a Junta Militar como uma ditadura. O marido da Margareth Thatcher era especialista em assuntos petrolíferos e um dos principais acionistas da Falklands Islands Company. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental apoiaram diretamente a Inglaterra. Mesmo o Mitterrand, do chamado Partido Socialista francês, apoiou a Inglaterra na guerra colonial das Malvinas. A Inglaterra venceu rapidamente a guerra. Em pouco mais de três meses, humilhou a Argentina.

Durante a Guerra das Malvinas, com a alta inflacionária, os ricos correram pros bancos pra sacar dólares, enquanto os pobres, que mais sofreram com a política econômica monetarista e ultra-liberal, não perturbaram a economia do país. Como ministro da economia do Videla, o Martínez de Hoz ofereceu dólares à classe média como se fossem hóstias do consumismo. Os seus sucessores nesse ministério também seguiram o caminho de fazer a sujeira "limpa" da guerra suja. O ultra-liberalismo econômico da ditadura, que foi imposta pra pôr em prática esse ultra-liberalismo econômico, enfraqueceu muitíssimo a Argentina e favoreceu muitíssimo as transnacionais dos países centrais do sistema capitalista mundial. O discurso nacionalista grandiloqüente da ditadura abafava a música que seus gerentes dedicavam a seus patrões: a subordinação às grandes potências capitalistas.

A privatização (e a desnacionalização) do petróleo nas Malvinas continua, como testemunham as notícias Argentina denuncia penalmente petroleiras estrangeiras nas Malvinas e Avança projeto de exploração de petróleo nas Malvinas.

Na Copa do Mundo de futebol de 1986, em que a Argentina foi campeã pela segunda vez, com o Maradona encantando em campo, o craque argentino conseguiu uma importante vitória simbólica contra o imperialismo britânico. Numa atuação brilhante, o Pibe de Oro fez dois gols e garantiu a vitória contra a Inglaterra, por 2 x 1. Esses dois gols marcaram especialmente a história do futebol . Num, ele enganou o goleiro inglês ao "cabecear" com a mão (o gol ficou conhecido como La Mano de Diós). No segundo, ele driblou grande parte do time inglês, inclusive o goleiro, antes de deixar a bola na rede. É considerado um dos mais lindos gols da história das Copas. As feridas da Guerra das Malvinas, ainda muito abertas, tinham reavivado numa parte do povo a consciência em relação às veias abertas por causa do imperialismo inglês ao longo de toda a história argentina, e o Maradona, com aquela vitória magnífica, parecia dizer que valia a pena o povão argentino sonhar em ser, finalmente, independente, que esse povo podia vencer o imperialismo e viver com justiça social, e que isso passava por agir como povo, e não como indivíduo preso atrás das garras dos códigos de barras. Parecia dizer que o povo poderia vencer a tecnocracia. Foi como se o Maradona tivesse reeditado, de forma ainda mais (in)crível, "El gol imposible". Não apenas o que o Ernesto Grillo marcou na vitória da Argentina por 3 x 1 contra a Inglaterra, em 1953, mas também, e sobretudo, "el gol imposible" que foi o ensaio de insubordinação fundadora do peronismo, como diria o estudioso argentino de relações internacionais Marcelo Gullo. De modo mais amplo (e pra além das contradições do peronismo), "el gol imposible" da luta do povo argentino por uma sociedade independente e justa.

Ditadura do liberalismo econômico como fio condutor

Apesar disso, o fim da ditadura no plano político mais direto não significou o fim da política econômica ultra-liberal que se camufla de técnica, que, por sua vez, se disfarça de neutra. Na década de 1990, a privatização da YPF foi completada, no governo do Carlos Menem. Além de 36 mil trabalhadores demitidos, essa privatização significou, entre outros problemas, menos recursos pro povo argentino, menos capacidade da sociedade argentina organizar e financiar o seu desenvolvimento econômico e perda de soberania energética do país. Ou seja, a "democracia" terminando o trabalho sujo que a Década Infame (1930-1943) e depois a infame década da ditadura (1976-1983) haviam iniciado. Mesmo a retomada, por parte do governo da Cristina Kirchner, em 2012, de 51% das ações da YPF, a privatização continua vencedora, principalmente no que diz respeito à privatização da lógica de funcionamento da empresa e do setor de energia.

Na Petrobras, a tecnocracia ultra-liberal colonizada também vem aprofundando muitíssimo e de modo muitíssimo acelerado a privatização, em grande medida também desnacionalizante. Com a sua varinha mágica-chibata tecnocrática, vem aprofundando de modo especialmente perverso uma versão brazileira de um Processo de Reorganização Nacional. Com ou sem tanques, a tecnocracia ultra-liberal está sempre a serviço do carro-forte, que é o caveirão das finanças. Ou derrotamos o projeto privatista ou o caveirão das finanças vai deixar muito mais copro no chão do que já tem deixado.

Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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