O debate sobre segurança pública em tempos de pós-verdade
Gabriel Miranda
Doutorando em Psicologia (UFRN)
Já há algum tempo, intelectuais, acadêmicos(as) e militantes do campo progressista que debatem assuntos relacionados à área da segurança pública vêm sendo acusados(as) de complacência com criminosos e de apresentarem argumentos deveras sentimentais. Parece ridículo que, em tempos de laranjas, a atual direita brasileira possa acusar alguém de complacência com criminosos, mas acontece. Dizem eles, “está com pena?! Então leva para casa”, quando, por exemplo, questionamos e criticamos as execuções sumárias, os linchamentos, a violência policial e o caráter classista e racista das prisões.
Quem me conhece bem, sabe que eu não levaria sequer um gatinho de rua para minha casa, quanto mais um sujeito que cometeu um crime qualquer. E não, isso não me coloca em contradição. Em momento algum, o discurso que defendo pretende levar o ladrão para casa. Tal acusação é completamente falaciosa e desonesta. O que fazemos, em geral, é questionar e problematizar as circunstâncias que estão envolvidas na produção de determinados tipos de delitos em um país tão desigual como o Brasil. Inclusive, o último sujeito que me lembro de ter levado o ladrão para casa foi Jesus Cristo, quando, na cruz, disse a Dimas, “em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”, conforme descrito no capítulo 23, versículo 43, do livro bíblico de Lucas.
O discurso sobre segurança pública que eu e outros(as) colegas defendemos é baseado em investigações científicas e preza pela garantia da dignidade humana de qualquer cidadão, não outra coisa. Afinal, não sei se o(a) leitor(a) sabe, mas cometer um crime não torna o sujeito um não-humano, um monstro que deve ser destruído. Parece, contudo, que dada a ideologia punitivista que aparentemente ganhou ares de senso comum nos últimos anos, os desviantes, sobretudo aqueles de corpos magros e pele escura, devem ser destruídos, eliminados. E olhem que curiosa a semelhança com aquele episódio de Black Mirror1 em que os soldados do Exército possuem um transplante neural que distorce a percepção deles acerca das pessoas que resistem ao status quo do cenário pós-apocalíptico descrito na trama. Graças a esse implante, os soldados veem essas pessoas como monstros e as matam sem qualquer tipo de remorso, pois, afinal, estão contribuindo para defender a Terra de tais seres ameaçadores.
Pois bem, deixa eu contar: não precisamos de um transplante neural para alterar nossa percepção do mundo. A ideologia já o faz. E o que está em cena no Brasil contemporâneo é isso: o triunfo da mediocridade, a negação da verdade e da ciência, a vitória da ideologia dos que se dizem sem ideologia. Patéticos. Como disse Terry Eagleton, ideologia é como mau hálito, só quem tem são os outros. O contraditório nacionalismo entreguista, a biologização do gênero, o punitivismo como resposta para a insegurança, a crença no neoliberalismo, o controle sobre corpos femininos e relações homoafetivas e homoeróticas: nada disso é ideológico. A defesa dos Direitos Humanos e a denúncia de um modelo econômico produtor de desigualdade e miséria, é. Mais uma vez: patéticos. Cínicos.
Constitucional e legalmente, se é que isso ainda tem alguma importância no Brasil pós-golpe e pró-Bolsonaro, ao cometer um crime, o sujeito deve ser submetido a julgamento e, se condenado, deve ser responsabilizado através de uma pena que, em circunstância alguma, deve violar a dignidade humana, apesar de sabermos que não é isso que acontece na prática. Execuções sumárias, espancamentos, agressões verbais e torturas não são medidas previstas na legislação para o tratamento dos criminosos e suspeitos, embora saibamos que, muitas vezes, isso é o que ocorre na prática, sobretudo quando o sujeito que infringe ou que é suspeito de infringir a lei é pobre e preto. Parece que em relação a esses, pode-se fazer tudo. São as Genis de nosso Brasil.
Conforme escrevi no início deste texto, acusam a mim e a todo um conjunto de intelectuais vinculados ao campo político progressista de fazermos um debate permeado por sentimentos, o que nos faria não agir com razão. Técnica antiga, inclusive. Jessé Souza denunciou a ideia do tipo ideal de brasileiro visto como homem cordial, aquele que age por fortes sentimentos, como um exemplo da construção fictícia do brasileiro como lacaio de um outro tipo de humano, não comum nos trópicos, o homem racional. Quando os misóginos de plantão querem deslegitimar uma mulher, a acusam de louca, descontrolada etc. Indo ainda mais longe, os colonizadores fizeram o mesmo com aqueles a quem deram o nome de índios, os primeiros brasileiros.
Mas não, não são os sentimentos que guiam o debate sobre segurança pública dos setores críticos da esquerda brasileira, ou seja, daqueles que denunciam o punitivismo, a guerra às drogas, a militarização dos territórios e o encarceramento classista e racializado que nos coloca na posição de 3º país com o maior número de presos. O discurso sentimental, ao contrário, é aquele retributivo, que confunde vingança com justiça, que defende a pena de morte e o encarceramento em massa. Tal discurso, permeado por sentimentos de vingança e ódio, é carta marcada da antiga e da nova direita brasileira. E por ser tão influenciado por sentimentos, é quase que espontâneo e, portanto, carente de reflexão, de criticidade. Isso, certamente, para o grosso do eleitorado que confere legitimidade a esse discurso. Para os think tanks, os legisladores e os demais donos do poder, trata-se de um projeto muito bem articulado.
O atual governo, composto por arautos do neoliberalismo, viúvos da ditatura e ignorantes políticos de toda monta, está preparando as bases para que os próximos anos batam os recordes de homicídios, de encarceramento, de crimes de ódio contra minorias políticas e de violência policial. O recente pacote anticrime e o decreto que flexibiliza os requisitos para adquirir a posse de armas são alguns exemplos de quanto estrago se pode fazer em apenas um mês de governo.
Enquanto a insegurança urbana não for vista como uma consequência da insegurança social originada por um capitalismo dependente e neoliberal que superexplora a população em postos de trabalho que não pagam o mínimo para que se viva com dignidade2 , o projeto político genocida, racista e classista continuará operando a pleno vapor, matando e encarcerando a juventude que poderia estar ocupando escolas e universidades. Acreditar que mais punição irá resolver o problema da insegurança é negar a realidade, que mostra que 707% de aumento de presos entre 1990 e 2016 não tornaram as ruas mais seguras. Mas em tempos de pós-verdade e disseminação das ditas fake news, quem se importa em ser fiel à realidade?
1 Trata-se do quinto episódio da terceira temporada, intitulado Men Against Fire.
2O salário mínimo nominal é quatro vezes inferior ao salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE.