In Code We Trust (I) - A blockchain entre a hype e o ceticismo
Em seu livro "Dívida: Os primeiro 5000 anos" David Graber relata a história de um soldado britânico[1] em Hong Kong, na década de 50, que certa vez pagara sua conta no bar com um cheque inglês. Um dia o soldado encontrou seu cheque nas mãos de um vendedor local, com várias pequenas rasuras no papel. Sem possibilidade de utilização, à princípio, os mercadores começaram a trocar o papel entre si, acrescentando suas assinaturas, sinal da confiança depositada nesse processo. O autor conclui logo em seguida que o valor da unidade da moeda não é o valor do objeto, mas a medida da confiança de uma pessoa em outra. O elemento de confiança no curso, continua o autor, é o que dificulta mais ainda a posição Chartanista - do Latim Charta, símbolo ou token - de fazer com que as pessoas continuem acreditando nesse charta. Mais ainda se falarmos no estabelecimento dessa confiança em escala global.
As tecnologias se desenvolveram, os papéis se transformaram em números, mas o problema da confiança persistiu nas discussões de listas sobre as tentativas de elaboração de uma moeda criptográfica digital. A mais importante levava o nome do que viria mais tarde a ser classificado por alguns enquanto um movimento: cypherpunks[2].
O fato dos cypherpunks (uma brincadeira com o termo cyberpunks) terem estabelecido como foco de luta a privacidade, trajando um discurso anti-estatista, é decorrente da constituição da lista de uma maioria de "libertários[3] radicais", seguidos de alguns "anarco-capitalistas" e até poucos socialistas[4], descrentes das "organizações centrais". Almejavam transações P2P (peer-to-peer ou ponto-a-ponto), diretas entre os pares envolvidos, sem que houvesse a necessidade de um agente exterior que regulasse ou intermediasse essas relações. Essa descrença se potencializa em conflito com a NSA (Agência de Segurança Nacional) em relação ao acesso aos documentos e informações sobre criptografia. A luta pela criptografia assumiu um caráter de busca pela liberdade individual, da posse das novas armas da era da informação. Não à toa, slogans utilizados pelo movimento cypherpunk (ou cripto-anarquista) eram apropriadas de slogans de movimentos pró-armamentistas, trocando-se 'guns' por 'crypto', afinal, "crypto = guns"[5]. Organizando-se através de uma lista de e-mails, os cypherpunks trocavam códigos, idéias, informações, ataques pessoais e demais inutilidades. Conspiravam na idealização de novas formas organizativas, novos arranjos econômicos e mecanismos mais seguros para a transmissão dessas informações. Nessa luta contra os "atravessadores", é papel dos cypherpunks forjar os instrumentos que propiciem maior segurança e autonomia para os "nós"[6], que devem se ampliar o máximo possível e derrotar os sistemas vigentes pela sua insuficiência frente a essas redes mais seguras, descentralizadas e íntegras, para que a livre expressão possa, enfim, se exercer da forma mais plena. Os cypherpunks estão interessados em criar os mecanismos para que os códigos possam lidar com as coisas, e é aí que empreendem seus esforços, objetivando a criação desse novo mundo de privacidade e livre expressão assegurados pelo anonimato.
No final de outubro de 2008 é publicado na lista um whitepaper chamado "Bitcoin - A Peer to Peer eletronic cash system"[7] que apresenta essa nova moeda criptográfica digital e explica o funcionamento do que viria a ser mais tarde chamado de Blockchain, a tecnologia que tornou a aplicação Bitcoin possível.
A Blockchain surge para se resolver a debilidade do sistema de confiança, delegada à uma entidade central, colocando em seu lugar uma solução criptográfica que se baseia em um "consenso distribuído" determinado por algoritmos que levam os participantes, ou os nós, desses sistemas descentralizados a um resultado único e aceito por todos os outros nós do sistema. A tecnologia de registro distribuído (outro nome para a blockchain) funciona como uma espécie de livro caixa descentralizado. Cada participante guarda consigo uma cópia desse livro caixa, e todas as transações efetuadas são, então, inscritas em todas as suas cópias. Esse registro transacional aceito pelos nós inibe os "double-spendings"[8], uma vez que todas as transações são registradas em uma lista encadeada de blocos criptografados onde cada bloco aponta tanto para a chave criptográfica de seu antecessor quanto do seu sucessor. Essa solução criptográfica impede que as transações sejam violadas, tornando a Blockchain uma "máquina de confiança"[9], mesmo que essa confiança seja estabelecida eliminando-se a própria confiança. Aliada ao conceito de "Smart Contracts"[10], objetivando automatizar o cumprimento e execução de regras de transferência de ativos, automatização de mecanismos de pagamento e demais aplicações contratuais, as máquinas agora passam a ser os intermediários dos fluxos, seguindo o determinado pelos contratos e consensualizado por todos os nós participantes da rede.
Não é de se espantar que, uma vez conseguido consolidar os meios para o estabelecimento de um sistema global e descentralizado para a transferência de valores, a bitcoin tenha chamado tanta atenção e conquistado tanto a confiança dos especuladores de plantão. Foi apenas questão de tempo até a bitcoin sair das listas cypherpunks e se difundir nos movimentos transacionais da internet, corroer os finos tecidos do capital especulativo para se catalisar[11] e, enfim, possibilitar a inovação do mercado de capitais através das ICOs[12]. Como devem estar se sentido aqueles "poucos socialistas" cypherpunks ao verem a completa absorção das soluções criptográficas pelo capitalismo e seu recente hype? E como se sentem os cypherpunks, em geral, frente aos novos e aos velhos "third-parties"[13], que já começam a explorar as ferramentas para lidar com os novos paradigmas tecnológicos?
Os governos e os sistemas econômicos não foram substituídos por códigos. Vivemos um momento de readaptação dos "atravessadores", cuja crítica infelizmente não conseguiu ir muito além das bíblias criptoanarquistas e das ruminancias teóricas libertarianas, afinal, o que são as redes socias senão atravessadores de informações? E o que significa a dedicação do Facebook[14] e do Telegram[15] na adoção da blockchain, bem como de diversos bancos[16] ao redor do mundo? A bem da verdade, uma tecnologia "disruptiva" como a blockchain conseguirá se exercer plenamente nos limites do capital, mesmo provocando conflitos e estabelecendo elementos contraditórios. De sistemas de rastreamento de cadeias produtivas[17] a gatinhos criptocolecionáveis[18], passando por vouchers de alimentação para refugiados sírios[19] e aplicativo de consentimento de sexo[20], a blockchain abriu novos espaços para experimentação e os "orgãos centrais" já estão a postos na corrida para se apropriar da tecnologia[21]. No próximo artigo buscaremos dissecar as aplicações da blockchain através de alguns estudos de caso, provocar ainda mais a incidência dos "atravessadores" e buscar compreender em que sentido isso pode se refletir também nos processos de uberização das relações de trabalho.
↑ [2] ASSANGE, Julian - Cypherpunks - Liberdade e o Futuro da Internet.
↑ [3] O termo aqui é derivado de uma tendência liberal radical norte-americana, não tendo nada a ver com os socialistas-libertários, anarquistas, que faziam uso dessa denominação no final do século XVIII.
↑ [4] "The list has a lot of radical libertarians, some anarcho-capitalists, and even a few socialists" - Timothy C. May em seu FAQ sobre os os Cypherpunks, intitulado Cyphernomicon. O FAQ pode ser encontrado em https://www.cypherpunks.to/faq/cyphernomicron/cyphernomicon.html
↑ [5] "crypto = guns in the sense of being an individual's preemptive protection" - trecho também retirado da Cyphernomicon.
↑ [6] Um nó, ou nodo, é um ponto de conexão. No caso da Blockchain, os nós são esses pontos de redistribuição das informações transacionais, que são enviados por toda a rede e estabelecem o "consenso distribuído", ou seja, todos os nós mantém cópias integrais do "livro caixa" da rede Blockchain.
↑ [7] Disponível em: https://bitcoin.org/bitcoin.pdf .
↑ [8] Double-spending, ou gasto duplo, é um erro potencial no sistema das cripto-moedas em que se gasta duas vezes o valor que se tem na carteira. A Blockchain inibe esse problema ao registrar todas as transações. Cada nova transação adicionada ao bloco percorre toda a rede com o intuito de confirmar se aquelas moedas podem, realmente, ser transacionadas.
↑ [9] Esse foi o anúncio da nova tecnologia na capa do The Economist, em Outubro de 2015. O artigo pode ser encontrado em: https://www.economist.com/news/leaders/21677198-technology-behind-bitcoi... .
↑ [10] O conceito de Smart Contracts é anterior à Blockchain, sendo cunhado em meados dos anos 90 por Nick Szabo.
↑ [11] Em dezembro de 2017 o Bitcoin atingiu seu ápice e o valor de uma moeda equivalia a R$ 63.612,43.
↑ [12] Initial Coin Offering funciona como uma espécie de crowdfunding em que se busca arrecadar fundos para projetos dedicados à criptomoedas e soluções de blockchain.
↑ [13] Outro nome para os "atravessadores". São os "terceiros", que intermediam as relações entre duas partes.
↑ [14] https://www.cnbc.com/2018/05/09/zuckerberg-invests-in-blockchain-to-keep... .
↑ [15] O vídeo de apresentação da TON, que ainda não teve anúncio oficial mas cujo whitepapers foram vazados, pode ser conferido aqui: https://youtu.be/aM03fKFTMYk .
↑ [16] Bancos brasileiros já estão de olho na nova tecnologia: http://www.valor.com.br/financas/5294143/bancos-iniciam-uso-de-blockchai... .
↑ [17] BRF e Carrefour, em parceria com a IBM, já aplicam a tecnologia para rastreamento de alimentos. Fonte: https://www.ibm.com/blogs/robertoa/2017/11/brf-e-carrefour-usam-tecnolog... .
↑ [18] Mais sobre o jogo CryptoKitties: https://www.cryptokitties.co/
↑ [19] https://insight.wfp.org/what-is-blockchain-and-how-is-it-connected-to-fi... .
↑ [20] O LegalFling promete ser um aplicativo para consentimento de sexo, verificável através da Blockchain. Mais informações: https://legalfling.io/ .
↑ [21] Conversei com um desenvolvedor que acabava de vir de uma viagem de Nova Iork e Boston para trocar experiências com outras instituições que estudavam a Blockchain. Este me informou que, de acordo com a Berkman Klein Center, a iniciativa privada é a maior investidora na tecnologia. Por outro lado, no governo americano, os maiores avanços em sua utilização se dão pelo FBI. No Brasil, o banco de fomento BNDES está desenvolvendo a BNDES Token, que busca tornar mais transparente a utilização dos créditos fornecidos.